Pela primeira vez em seus 129 anos, a revista americana Science dedicou sua capa à pesquisa de um brasileiro, o neurocientista Miguel Ângelo Laporta Nicolelis. Paulistano de 48 anos, Nicolelis dirige, desde 1994, o Centro de Neurociência da Universidade Duke, na Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Nicolelis é uma referência mundial na pesquisa da interface entre o cérebro e os computadores. Há anos ele trabalha com implante de próteses no cérebro de pacientes paralisados com lesões na medula – seu objetivo é permitir que voltem a andar, controlando trajes robóticos com o pensamento. Em seu novo estudo, ele ampliou a aplicação de sua pesquisa: Nicolelis deu uma nova direção às tentativas de curar o mal de Parkinson. “Com este artigo da Science, abri uma nova frente de trabalho”, diz.
O estudo foi feito a partir do implante de próteses na medula espinhal de ratos com sintomas iguais aos do Parkinson – uma doença degenerativa do sistema nervoso que causa tremores e espasmos incontroláveis e pode levar à morte. Ao estimular eletricamente a medula de ratos paralisados, a equipe de Nicolelis conseguiu reverter os piores sintomas relacionados à doença (leia mais detalhes na entrevista). Só nos Estados Unidos, meio milhão de pessoas sofrem de Parkinson, e 50 mil novos casos surgem por ano. No Brasil, o Ministério da Saúde não tem estatísticas sobre a doença.
“É a primeira vez que a ciência brasileira ganha a capa da maior revista científica do mundo”, diz Nicolelis. “Escolheram minha pesquisa porque ela não é uma terapia potencial apenas para Parkinson. É uma nova visão que pode influenciar o tratamento de outras doenças do sistema nervoso. Ainda não sabemos quais.”
O trabalho de Nicolelis com implante de próteses no cérebro de cobaias começou em 1984, quando ele se formou em medicina, na Universidade de São Paulo. “Quando comecei a estudar o cérebro, o neurônio era considerado o rei da cocada preta. Ele só era pensado de forma isolada. Era como se os neurologistas só enxergassem um átomo de cada vez, nunca as moléculas.” Nicolelis leu que os astrônomos usam redes com várias antenas para mapear o céu e construir uma grande imagem virtual. E pensou: será que o cérebro também funciona assim?
Seu trabalho começou a ganhar evidência internacional em 1999, quando implantou uma prótese no cérebro da macaquinha Belle. O implante em 90 neurônios permitiu, pela primeira vez, a um primata mover um braço robótico com a força do pensamento. “Ao usar vários eletrodos para registrar os sinais de 90 neurônios ao mesmo tempo, obtive um sinal amplificado e de melhor qualidade”, diz.
Em 2001, a pesquisa de Nicolelis foi listada pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) como uma das dez tecnologias que vão mudar o mundo. Dois anos depois, Nicolelis registrou os sinais elétricos emitidos por 500 neurônios no cérebro da macaca Idoya e os transmitiu de seu laboratório ao MIT, a 1.000 quilômetros dali, onde a macaca fez um braço-robô se mover. Em janeiro de 2008, o pensamento de Idoya deu a volta ao mundo, literalmente. “Ela começou a andar em uma esteira no meu laboratório”, diz Nicolelis. “Nós registramos o movimento da atividade neural e enviamos o sinal, via satélite, em um décimo de segundo dos Estados Unidos ao Japão. Em Kyoto, um robô humanóide de 90 quilos andou sob o controle de Idoya.” O próximo passo é tentar fazer humanos com paralisia voltar a andar. Os testes começam daqui a três meses, no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo.
FRONTEIRA CIENTÍFICA
Em 2008, um robô em Kyoto (à esq.) andou graças ao pensamento de um macaco no laboratório de Nicolelis, nos Estados Unidos. Foi o ponto culminante de um trabalho iniciado em 1999, com a macaca Belle (à dir.). Entre as duas pesquisas, Nicolelis fundou o Instituto de Neurociência de Natal (centro)
Em 2008, um robô em Kyoto (à esq.) andou graças ao pensamento de um macaco no laboratório de Nicolelis, nos Estados Unidos. Foi o ponto culminante de um trabalho iniciado em 1999, com a macaca Belle (à dir.). Entre as duas pesquisas, Nicolelis fundou o Instituto de Neurociência de Natal (centro)
Pesquisador de ideias polêmicas, Nicolelis chamou a atenção da Academia Sueca. Em 15 de novembro de 2007, foi convidado pelo comitê do Nobel de Medicina para dar uma palestra sobre seu trabalho em Estocolmo. “Eles queriam que eu contasse a história das neuropróteses.” As razões que levam à escolha de um Nobel são o segredo mais bem guardado da ciência. Ninguém se candidata nem pode ser indicado. Nenhum contemplado jamais soube que estava no páreo até receber o telefonema de congratulações. Nicolelis diz que tem pouca chance, porque a disputa é acirrada demais e ele não participa das rodas de decisão do prêmio. “Só posso dizer que um colega que recebeu o Nobel disse que meu trabalho entrou para o radar deles.”
Se conseguiu tantos avanços quando passou a pensar nos neurônios em conjunto – e não isoladamente, como fazia a maioria dos cientistas –, era natural que Nicolelis tentasse ir mais além e passasse a imaginar o sistema nervoso como um todo. “É o que provamos com a pesquisa na Science. Não é preciso intervir diretamente no cérebro para tratar uma doença como Parkinson”, diz. Ninguém jamais imaginou intervir na medula espinhal para tratar essa doença, devido à visão tradicional do cérebro da maioria dos neurocientistas. “Nossa solução é um modelo completamente diferente do que se prega há cem anos. O pessoal continua achando que o cérebro é formado por ilhas funcionais segregadas. Nosso trabalho mostra que não, ele é um contínuo.”
Toda semana são publicados estudos mostrando zonas diferentes do cérebro que seriam responsáveis por tarefas diferentes, como memória e emoção. “Essa divisão não tem sentido. Vamos demolir tudo isso”, afirma. Nicolelis está escrevendo um livro em que proporá uma nova teoria do cérebro. Quer publicá-lo em 2010. “Vai ser uma briga de foice. Vou atacar o coração da neurociência.”
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