E os pobres são apenas matéria-prima para a construção do mito que Luciano alimenta: o do bom moço. Artigo de Claudio Tognolli sobre a morte de Wanderson Pereira dos Santos, atropelado por Thor, filho do bilionário Eike Batista
Claudio Tognolli _247 - Há pouco mais de uma semana, a Controladoria-Geral da União (CGU) divulgou uma relação com 164 entidades privadas acusadas de cometer “irregularidades graves e insanáveis” na prestação de serviços a órgãos e entidades federais. Incluídas no Cadastro de Entidades Privadas sem Fins Lucrativos Impedidas (Cepim), elas estão proibidas de assinar novos convênios ou termos de parceria com órgãos da administração pública federal, como os vários ministérios e autarquias. Ou seja: as ONGS em defesa do populacho resolveram meter a mão na massa.
Sabem o que é isso? É que até o governo do PT, e até os seus sindicalistas mais radicais, se tocaram de que defender pobre é um bom negócio. Psicanalistas de plantão referem que gente bem de vida defende pobre como uma forma de excogitar, ou simplesmente vomitar, uma atávica culpa por terem dado certo na vida. Certamente a nossa gramática não concebe o “quadradamente certo”: mas os doutores da mente estão redondamente enganados: defender pobre é o melhor negócio desse começo de século XXI. Não há culpa na prática: é dinheiro vivo e ponto final…
Um dos arautos dessa defesa do pobre é Luciano Huck. Dono de sorriso perene, já mereceu capas das duas maiores revistas do país. “Veja” estampou-lhe o rosto com a epígrafe “A reinvenção do bom mocismo”. “’Época”, editada pela mesma corporação que gera o “cash cow” a Huck, focou o roubo de seu Rolex, caixa Oyster, de ouro, gritando a manchete “Ele merecia ser roubado ?”
Huck perfaz milhões em anúncios, lobbies comerciais, etc, recheando esse construto financeiro com um subproduto jornalístico voltado à defesa dos “frascos e comprimidos”. Mas Huck confecciona cocô achando que o cheiro poderia ser secundário ao artefato. O arranjo medieval que Huck vende em seus produtos volta e meia tem seu vazo rachado, e a água salobra vaza: na briga entre o rico e o pobre, como agora, Luciano Huck vai se postar, avant la letre, antes de mais nada, ao lado do rico.
“Fatalidade. Não tinha bebido e prestou socorro", tuitou o apresentador neste domingo, sobre o atropelamento cometido pelo filho de Eike Batista. Testemunhas dizem que o atropelado conhecia bem o local. E estaria andando no acostamento. Por que Luciano Huck saiu em defesa do milionário antes da realização de uma perícia? Porque o apresentador sabe que no Brasil todo mundo que dispõe de dinheiro costuma contratar peritos particulares para fazer o chamado contra-laudo. O estatuto do Direito, em que a deusa da Justiça, Artemis, aparece atavicamente com os olhos vendados, prevê a confecção de contra-laudos (para oxigenar a impacialidade do processo). Foi assim no caso de PC Farias, ex-tesoureiro de campanha do ex-presidente Collor. Foi assim no caso Eloá. Obviamente, Eike Batista vai contratar peritos particulares… e cabe a Luciano Huck simplesmente viciar o processo, pelo atalho da contaminação da opinião pública -- de onde costumam vir os jurados.
O Burguês Fidalgo
Veja você aghora: corria um 14 de outubro de 1670. Diante da corte do rei francês Luís XIV, no castelo de Chambord, estreia a peça “Le bourgeois gentil homme”, traduzida por aqui como “O burguês fidalgo”. Nela, Molière nivela os destinos de personagens metidos a alpinismo social, a pequenos vícios e vilanias da burguesia --e a demais subprodutos de uma classe que, por mais esforçada que fosse, não passava de um subproduto, uma meia-confecção. Molière pensou muito no título. Afinal era um oximoro: porque na França daquela época, veja você, a tradução de “gentil homme” (cavalheiro) dava a ideia de pessoa nascida nobre. Dai, portanto, não poderia ser, tecnicamente, cavalheiro e burguês ao mesmo tempo.
E olhe o seguinte: o cidadão de inteligência apoucada a protagonizar a historia, um burguês chamado Jourdain, está quase na meia idade (seu pai enriqueceu como comerciante). A meta de Jourdain é clara: ser um cavalheiro aristocrata. Jourdain leva de cambulhão a determinação de sorver de todas as artes cavalheirescas possíveis, que serviam de selo e lacre à burguesia mental: dança, música, filosofia, esgrima – e sempre afetando um bom-mocismo substantivo, ainda que sujeito a variações adjetivas.
Temos o nosso Jourdain. Nosso Jourdain é um ser inflável, um ursinho carinhoso. Cheira a bonomia e bons perfumes. Luciano Huck é o nosso “gentil homme” pós-moderno. Como diria Machado de Assis: é incapaz de odiar, talvez seja incapaz de amar. Huck é um ser Disney, é aquilo que nas escolas primárias se chama de inho. Seu mundo parece não ter fricções. Tudo é róseo, tudo está em calma suspensão. Afinal Huck subiu de colunista de festas da sub-burguesia paulistana, no Jornal da Tarde, nos anos 90, para o mais reluzente Global e o mais seguido no Twitter brazuca. Huck, como um ser Disney inflável, quer mais alturas. Afinal, se um operário que era o terror dos patrões chegou lá, afinal se uma nerd de metranca, que era o terror dos banqueiros, chegou lá, porque um bonzinho inho inho inho não poderá.
O bonzinho-inho profissional sabe fazer de sua bonomia um bom negócio: e o filho de Eike Batista surgiu como um negócio de ocasião.
A luta de classes costuma ocorrer quando o peão que vai pra fábrica, 4 da manhã de segunda-feira, encara numa treta, num ponto de ônibus, o milonário bêbado, voltando na boate. Não tenha dúvida que nessa cena, Huck defenderia o dono do carro e seu Rolex.
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